Banquete em família

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Foto Adriano Curado
Aquele era o primeiro encontro de Valter com a família de Emília, uma moça que ele conheceu casualmente há um mês, quando começaram a se relacionar. Se dependesse dela já teria conhecido sua gente logo na primeira semana de namoro, tamanha a insistência. Mas ele adiou o quanto pôde o encontro, para evitar precipitações. 

Naquele domingo, no entanto, não houve como escapar. Emília lhe contou que seria aniversário de oitenta anos de sua avó e que toda a família estaria presente. Se ele não comparecesse, a magoaria. Então aceitou.

Valter era executivo de uma empresa multinacional e sabia que não ficaria muito tempo na cidade ou talvez no Brasil, porém não comentava desses assuntos com a namorada. Melhor seria deixar que as coisas fluíssem naturalmente.

Mas voltemos ao almoço. Um pouco nervoso porque o contato inicial com os sogros seria com tamanha plateia – a rua estava cheia de carros – ele estacionou, suspirou fundo e foi até a porta da casa. Mal tocou a campainha e uma mão forte o puxou para dentro. Parecia até que o aguardavam ou que era ele o prato principal daquele banquete. 

Emília o apresentou de um por um, e todos o olhavam com um semblante esquisito, como se o estudassem do pé a cabeça. Alguns riram quando ele tropeçou num ferro pontudo que usavam para prender o portão. Por fim os sogros, de poucas palavras, e a simpática aniversariante. Chama-se Carmem, e não aparentava fazer oito décadas de vida. 

– Qual o segredo para se viver tanto e estar tão bem? – quis saber ele, e ela respondeu:

– Uma dieta especial.

Logo vieram os parabéns. Trouxeram um bolo imenso e abriram-se champanhes. Além dos olhares esquisitos que todos lhe lançavam, uma outra singularidade chamou a atenção de Valter: não havia comida na festa.

– Amor, por que não serviram comida ainda? – quis saber de Emília, e ela respondeu:

– Porque você enrolou muito para chegar.

A essas palavras a festa inteira começou a rir e apontar para ele. Um arrepio estranho percorreu sua coluna vertebral, e ele se preparava para sair dali, quando uma porretada na nuca o lançou ao chão. Ficou ali meio grogue, baba na boca e respiração ofegante. Emília então se abaixou e lhe disse sussurrado:

– Somos uma família moderna de canibais, meu amor, e você será servido hoje em homenagem à vovó. Sinta-se honrado com esse privilégio.

Alguém veio por trás, amarrou com fita adesiva seus braços para trás e também os pés. Mas o pior foi a mordaça para que não gritasse, pois ainda estava ofegante devido à paulada e não podia adormecer naqueles instantes cruciais. 

Valter viu que trouxeram uma mesa grande, meio inclinada e com sulcos nas laterais que convergiam para uma grande bacia. Certamente ali seria destrinchado e seu sangue não escorreria para o chão. Também começou a chegar gente com machadinha, facas e serrotes. E ainda ouviu alguém reclamar de sua pouca carne. O sogro principiou logo a narrar como seria:

– Vamos sangrá-lo ali naquele tanque porque tem um escoadouro para os resíduos e não vai para a rua. Depois traz a carcaça aqui para esta mesa e cortamos os pedaços. Tem uma panela elétrica especial para as partes que vão cozinhar e uma churrasqueira para as de assar. 

Valter tremia e suava sem controle. Seria um fim muito trágico e dolorido o dele, pensou. Mas de repente seu punho tocou no mesmo ferro pontudo que tropeçara. E além de pontudo era afiado. Com um golpe ele libertou as mãos e com outro os pés. Feito gato escalou a grade do portão, saltou para a rua e correu para o carro. Em minutos já estava no hotel. Fechou a conta, devolveu o carro na locadora e pegou um voo especial para a matriz da empresa. Sua transferência para a Europa foi imediata.

Essa história de Valter já conta dez anos. Ele nunca mais voltou ao Brasil, mas os pesadelos o acompanham todas as noites. Ainda hoje ele consegue se lembrar do rosto de todos os canibais, do tilintar dos objetos e do cheiro de podridão daquela casa. Mas o que mais o inquieta é saber que não fez nada para punir aquela gente e que possivelmente outras vítimas caíram na armadilha. 

Dois detalhes: ele nunca mais comeu carne ou se relacionou com alguém.

Adriano Curado

Conto resumido extraído do livro O tapuia que não falava português.

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