Abordagem policial

O pacato Joaquim lê o jornal no jardim. Ele é o motorista particular daquela mansão. Discreto, é o funcionário ideal. De repente, ao virar a página policial, depara com a foto de um terrorista que era procurado há décadas pela Interpol. Seu coração dá um salto e ele deixa cair o jornal.

Para entender essa história retornemos dez anos antes.

Era grande o movimento na estrada quando os policiais rodoviários resolveram montar a blitz. Quando escureceu a fila já era imensa e então resolveram diminuir ainda mais as abordagens. Os policiais Sousa e Ananias não estavam na blitz. Posicionaram-se uns dois quilômetros à frente, numa segunda barreira, para interceptar quem ousasse não parar.

Ananias era um homem de pouco mais de trinta anos de idade e dez na corporação. Colecionava uma longa ficha de antecedentes ruins que iam de abuso de autoridade até corrupção passiva. Não tinha condenação alguma, conforme explicava ao colega que o olhava meio assustado. Sousa, ao contrário, era quase novato, pois estava há apenas dois anos do quadro e seus antecedentes  permaneciam limpos.

Ainda conversavam os dois quando o rádio sinalizou que um motorista acabara de furar o bloqueio. Era preciso interceptá-lo. Então Ananinas, que era o motorista, acelerou no encalço do fugitivo que um pouco adiante entrou numa estrada de fazenda. Foi um duelo longo dos dois condutores na estrada poeirenta e escura, até que finalmente o da frente perdeu o controle, girou na pista e se chocou contra uma árvore. A viatura parou e antes que o motorista ainda tonto pudesse abrir a porta, conseguiram abordá-lo. Sousa ficou junto à viatura com uma submetralhadora na cobertura. 


— Escosta no capô — Ananias gritava descontrolado.

O outro obedeceu e após revistá-lo e constatar que não estava armado, Ananias lhe deu uma coronhada de pistola na cabeça e ele caiu.

— Para que isso? — protestou Sousa.
— Isso é um bandido. Para fugir assim deve ter roubado esse carro — e aplicou-lhe um chute na barriga.

Caído no chão com os braços na barriga dolorida, o agredido apenas gemia. Era um homem de uns quarenta anos, meia estatura e cabelo farto e liso.

— Você está ferrado, seu verme — continuava Ananias. — Queremos dinheiro. Você tem dinheiro?
— Mas que é isso? — protestou Sousa.
— Tenho bastante dinheiro — o outro se manifestou pela primeira vez.
— Então pegue logo - gritou Ananias. — Queremos tudo que tiver.
— Eu não quero não - respondeu Sousa. — E se você continuar com esse comportamento terei que prendê-lo agora mesmo.

Enquanto o motorista se dirigia até o carro para pegar o dinheiro, Ananias olhava para Sousa e ria com deboche, como quem diz: "você não fará nada." A sequência dos fatos ocorreu de maneira muito rápida. Ananias foi alvejado com um tiro no olho e quando Sousa deu por si já tinha uma pistola apontada para sua testa.

— Solte a arma — ordenou o assassino, no que foi prontamente atendido. — Agora se ajoelhe — falava sem emoção na voz. E outra vez foi atendido.
— Não me mate — a voz de Sousa tremia.
— E por que não?
— Porque não fiz nada contra você e não estava mancomunado com aquele bandido que está ali.
— É certo que você é um bom homem. Mas precisa morrer porque é testemunha contra mim.
— Sou nada. Se me deixar sair dessa eu vou largar essa profissão. Não quero mais ser policial. E no mais ainda não vi seu rosto porque o farol do seu carro está na minha cara.

O outro esboçou um leve sorriso.

— Então você dava abordagem ao seu colega sem ver direito a cena?
— Pois é.
— Isso não me parece muito profissional.
— Eu sei. Não levo muito jeito.
— Você sabe quem sou eu?
— Como poderia saber?
— Sou um homem muito mau, procurado por metade do mundo. Minha captura vale hoje milhões de dólares. Sou capaz de entrar na sua casa e arrancar seu coração sem que você perceba. Por isso vou deixá-lo viver. Mais por diversão mesmo que por piedade. Quero ver como se sairá dessa. Levante-se.

Sousa foi algemado a um tronco grosso e teve os olhos vendados. Depois escutou uma forte explosão e sentiu o calor de chamas nas costas. Não sabia ainda mas o corpo de Ananias estava ali dentro do carro do possível terrorista, que fugira na viatura. Passou a noite preso e adormeceu pesado. Acordou com o toque de uma mão que tirou sua venda. Era um jovem lavrador.

Passaram-se meses entre declarações à corregedoria e a inútil tentativa de fazer um retrato falado do bandido. Explicava que não tinha vista seu rosto, que tudo foi muito rápido e assim por diante. Mentira porque sabia quem era o tal homem. Foi até que o deixaram em paz e ele finalmente conseguiu se desligar da polícia.

Dez anos depois, está Joaquim Sousa com o coração na mão enquanto olha para o jornal ainda no chão. A notícia impactante dava conta de que o árabe Mohamed Sarimje foi encontrado morto e a autópcia do corpo concluiu por "causas naturais".

Adriano Curado

Conto resumido extraído do livro O tapuia que não falava português.

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