O dia que João morreu

No dia da morte de João não acontecia nada de espetacular, e nem o personagem principal era alguém de grande importância. Então por que contar essa história? Porque é simplesmente o João que saiu de casa ainda cedo, como fazia todos os dias, deixou os filhos na cama e a esposa ainda adormecida. Ela trabalhava de motorista de ônibus coletivo e tinha que estar no posto às quatro da manhã, impreterivelmente.

Ainda está escuro e João já faz funcionar seu veículo de trabalho. Daqui a pouco, no entanto, ele infelizmente morrerá, e adiante-se que não será nem de morte matada e nem de morte morrida. Mas aguardemos o desdobramento natural dos fatos porque não é de bom tom adiantar um assunto assim tão melindroso. Fato é que, se pelo menos desconfiasse da tragédia que o aguarda, João não estaria nesse cuidado todo com o ônibus, pois passa pacientemente a flanela pelo painel enquanto manobra no pátio da empresa.

Tenho pena de João, assim tão jovem (mal completou quarenta anos) e já vai morrer. Ele vem de uma família pobre, lá do interior do Estado, mudou-se para a cidade grande, estudou, tirou a carta de habilitação e, por fim, conseguiu galgar o posto de motorista, mas não sem antes ser cobrador por muitos anos suados. Casou faz pouco tempo, tem dois filhos, uma esposa bonitinha, uma casa financiada em trinta anos - dos quais ele viveu apenas dois.

O ônibus segue pela avenida principal. Já tem uns quatro gatos pingados sonolentos, mas ainda não é aqui que João morrerá. Por enquanto precisa trabalhar um pouco mais, fazer algo que justifique o salário do dia, porque pouco vai restar à viúva e aos filhos quando ele se for repentinamente. Então para nos pontos escuros, sobem passageiros enrolados em blusas de frio. Vai descer um que entrou no ponto passado mas parece que pegou o carro errado. São coisas do sono. Agora vai gastar mais e ainda chegar atrasado no emprego.

Enfim, chegou o momento. O busão, como o chamam por aqui, vai deixar a principal e entrar numa vicinal no rumo do centro. Tem um ponto em que está apenas um passageiro. É suspeito, está enfiado numa blusa com capuz atolado na cabeça, mãos dentro do bolso, e antes de subir olha insistente para os lados. Os passageiros que já estão dentro se alvoroçam, sabem que algo está por vir. Mas João nada pode fazer, é proibido deixar para trás alguém que o mandou parar. Faz alto, espirra o freio de ar, abre a porta e o homem sobe.

O passageiro é de fato um bandido. Rende o motorista com uma pistola e o força a arrancar. Param numa rua deserta e entram outros quatro comparsas, todos armados e mascarados. Os passageiros são autorizados a descer e desaparecem. O carro segue.

No grande assalto à empresa de ônibus, a polícia foi impedida de perseguir os ladrões porque o ônibus de João bloqueava a rua. Ele estava lá, ainda na cadeira do motorista, alvejado por um tiro. Sangue. Medicamentos. Ambulâncias. Hospital. Auxílio à família. Morte.

João acorda no paraíso: mar azul-turquesa, areias brancas e coqueiros que balançam ao sabor do vento. Está no céu? Quase. É Aruba, no Caribe. A mulher e os filhos estão com ele. Essa foi a recompensa por ter participado do assalto. E agora que João morreu... João vive!

Adriano Curado

Conto resumido extraído do livro O tapuia que não falava português.

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