A princesa moura

Quando as tropas cristãs tomaram Lisboa após longo e sangrento cerco, cruel foi a sorte dos prisioneiros homens passados ao fio da espada, mas creio que muito pior foi o destino das mulheres, violadas e depois também mortas. Correu um rio de sangue no calçamento de pedras seculares, e corpos ficaram estendidos e apodreciam ao sol. Mas nada disso impediu que os soldados cristãos saltassem essas porcarias e fossem saquear as casas para levar os bens dos subjugados. É o espólio de guerra. 

Era o dia 21 de outubro de 1147 quando finalmente terminou o cerco de três meses imposto à cidade e o exército de Dom Afonso Henrique atravessou a imbatível muralha de pedra. O sultão e quase toda sua família foram executados pela espada dos cruzados, e apenas sua filha caçula, Aludra A’ishah, de dezessete anos, escapou por conta de uma manobra das camareiras reais. Vestida de plebeia, ela se confundiu à demais mulheres na rendição e conseguiu sair da cidade. 


Não se distanciaram muito e logo foram cercadas por soldados e o sangue das que eram virgens se misturou à lama tingida de vermelho. Aludra perdeu a virgindade mas não a pureza porque sua alma era dedicada a Alá. Era calor de meio-dia. Tonta pelo esforço de suportar o estupro, caminhou sozinha e sem rumo pela margem do Tejo, olhos fixos nos barcos à distância, pensamento vazio de significados. Alguns soldados banhavam suas montarias e a observavam de longe. Mulheres cristãs lavavam roupa naquela água de costas para o caos estabelecido na cidade. Mas foi quando a lavadeira bateu a roupa numa pedra que se ouviu o grito aterrorizado do velho almuadem cego e que na língua arábica anunciava a todos a sua morte. E neste instante Aludra A’ishah desabou num choro convulsivo de desespero diante do pesadelo apocalíptico que vivia.

Mas o destino da princesa moura foi ser tomada como espólio de guerra por um soldado cristão e obrigada a ser sua serva por bastante tempo. Servia-o como cozinheira, arrumadeira, lavadeira e escrava sexual. Certo dia se viu grávida daquele que a considerava inimiga. Desesperada, com medo de que matasse seu filho, ela o apunhalou enquanto dormia e fugiu daquele lugar.

A princesa Aludra A’ishah deu à luz um menino não tão escuro quanto ela e nem pálido quanto o pai. Chamou-o de Miguel para confundir os cristãos. Já se passara um ano da retomada de Lisboa e agora nascia a esperança de que o herdeiro um dia retornasse à frente do exército mouro e retomasse para os seguidores de Maomé a cidade perdida. E para vingar toda aquela desgraça que se abateu sobre seu povo, Aludra subiu numa colina e rogou praga e então uma peste terrível se abateu sobre a região e ceifou a vida dos cruzados.

Agora, quarenta anos depois, Miguel é Mohamed, primeiro oficial do sultão Salandino, e observa por sobre a muralha de Jerusalém a aproximação do imenso exército cristão de Balião de Ibelin que vem cercar a cidade e forçá-la a se render. Por ter crescido com a repetição de histórias de ódio aos cristãos, ouvidas de sua falecida mãe, Mohamed se ofereceu para liderar a primeira divisão que se debaterá com os atacantes.

Cá de cima da muralha, ao lado desses nervosos mouros, vemos a poeira dos cavalos do pequeno grupo que quer reter a marcha histórica cristã. E que Alá os proteja!

Adriano Curado



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