Atualize o passado


Adoro ler biografias, notadamente de pessoas que já foram para o andar de cima. É claro que as biografias precisam ser bem escritas, porque ninguém merece textos ruins. Também devem ser generosas com descrições de cenários em que o biografado se moveu.
Creio que desde o ano zero da humanidade, as pessoas sentem curiosidade pela vida dos outros. Essa curiosidade é que faz com que a gente leia contos e romances, assista a séries e filmes, veja televisão, participe do Facebook e do Twitter.
Minha orelha de comadre se espicha toda para ouvir o que o casal está falando na mesa ao lado no quilo, o que as duas amigas confidenciam nas poltronas de trás do avião, o que o divertido trio de babás fofoca das respectivas patroas na Praça Pôr-do-Sol.
Mas para saber dos mortos, o jeito é ouvir memórias de terceiros. Curto quando alguém conta como era o pai ou a avô. Ou mesmo quando vejo fotografias antigas, aquelas em preto e branco, esmaecidas, nas quais apenas os olhos dos fotografados brilham de vida.
Talvez o que eu goste nas biografias e nas velhas fotos vá muito além da curiosidade ou bisbilhotice. Creio que tenha mais a ver com evocar um passado anterior a nós, um tempo que não experimentamos.
Sinto a força da evocação quando passo por antigas e abandonadas estações de trem. Entro numa espécie de teletransporte de alma. Por um segundo parece mesmo que estou fisicamente em outra época.
Não o eu com meu nome, meu sexo, minha idade. Um outro eu. Por exemplo, o de um rapaz segurando uma mala de papelão duro. Ao lado dele está a mãe aflita, com olhos marejados de despedida.
Tudo indica que ele está partindo para uma capital qualquer que o fará se distanciar da sua cidade de interior, do primeiro amor e dos amigos de rua e colégio. Mas ele inteiro anseia pelo trem que o aproximará do futuro, de uma vida toda a bordar.
O trem chega. O rapaz parte. Daí, consigo ser a mãe. A que fica na estação observando o último vagão sumir na curva. É claro que esse teletransporte tem a duração de um arrepio, quase um espasmo. Mas quando volto para o meu eu, estou mais eterna.
Por Fernanda Pompeu | Mente Aberta

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