Personagens do realismo mágico se tornaram comuns na linguagem dos games, na nova literatura juvenil e em trilogias cinematográficas. Mas esses seres fantásticos - com asas, orelhas pontiagudas, pés engraçados -, portadores de amuletos e dons - não são nada recentes. Os mitos - ou seja, as criaturas mágicas idealizadas pela imaginação do homem - são componentes históricos de todas as civilizações.
Também aqui no Brasil, os primeiros habitantes arranjaram o seu jeito de dar explicações para os fenômenos do mundo. Buscando entender o que se passava à sua volta, esses grupos criaram seus mitos, atribuindo-lhes forças mágicas. E é bem verdade que tais criaturas fantásticas ajudavam a simular respostas a seus questionamentos - tão grandes diante de um mundo desconhecido!
Quem leu Monteiro Lobato na infância conhece todas essas criaturas que a imaginação do brasileiro primitivo foi capaz de produzir. Esse conteúdo é tão rico antropologicamente que a UNESCO até premiou, com selo de qualidade, a produção televisiva ambientada no universo mágico de Lobato - contexto do infantil "Sítio do Picapau Amarelo" (Rede Globo).
Celebrando o Dia do Folclore - comemorado em 22 de agosto - e "vivendo o clima" da semana, relembre esses e outros mitos que representam o nosso cenário de florestas, rios e vastos recantos.
Iara
Iara ou "Mãe d'Água" é uma espécie de sereia nacional. Assim como o mito convencional, conhecido no mundo todo, a "criatura" brasileira também tem o corpo de uma linda mulher da cintura para cima e uma cauda de peixe. A diferença é que a nossa é uma sereia dos rios e tem uma flor vermelha no cabelo.
Mas a ideia essencial é a mesma figura já cantada pelos gregos e eternizada no conto de Andersen.
Aqui, o mito vem de uma lenda indígena, que varia entre as regiões do país. O ponto em comum entre todas: uma índia que morrera no rio e passara pelo encantamento de virar mulher-peixe.
Como nas lendas nórdicas, a "sereia brasileira" é misteriosa e traiçoeira, capaz de cantar lindamente para atrair os homens, hipnotizá-los com a sua beleza e, depois, atirá-los no fundo das águas onde os devora.
Curupira
A figura do Curupira também está fortemente ligada ao imaginário nacional, principalmente para as gerações anteriores. Visualmente, é um anão de cabelos vermelhos exuberantes e pés virados para trás (note-se aqui a ideia, em todas as culturas, de tornar diferenciados os pés das criaturas - pense no moderníssimo e ficcional Hobbit de "O Senhor dos Anéis").
No caso, os "pés para trás" do Curupira serviriam para despistar os invasores da floresta, que ao seguirem suas pegadas iriam em direção contrária... O Curupira cumpre essa função de ser um protetor das matas brasileiras. Por causa da missão é que também atribuem a ele longos assovios no meio da floresta para confundir os lenhadores, destruidores das árvores. Em nome da defesa da flora, ele até criaria terríveis alucinações para os malfeitores.
Saci-Pererê
O Saci-Pererê é, de longe, o personagem mais popular do folclore brasileiro. Segundo o conto, ele é um moleque travesso com poderes sobrenaturais, negro, saltitante em uma perna só, que usa um cachimbo e tem uma carapuça vermelha na cabeça. Na mata brasileira, o Saci nasceria em brotos de bambus.
A origem do mito, na verdade, está ligada a tribos de índios do sul do país. Mas a oralidade dá conta de um mito difundido e consolidado em todo o território nacional.
Num diálogo entre as culturas, o Saci-Pererê ganhou da mitologia africana o cachimbo, e da europeia a carapuça - muito parecida com o gorro vermelho do ente Trasgo [criaturinha que usa um gorro na mesma cor e tem poderes mágicos (numa lenda portuguesa)].
Uma ideia maléfica inicial da figura do Saci foi vencida, principalmente pela camaradagem dada ao mito popular pelo escritor Monteiro Lobato. E o Saci mostra-se apenas um trapaceador, porém amistoso.
Em sua obra infantil "O Saci" (da coleção "Sítio do Picapau Amarelo), Lobato coloca na boca de Tio Barnabé a receita para pegar sacis, explicando que eles se encontram em "redemoinhos em dias de vento bem forte" e que podem ser apanhados com uma peneira e depois guardados em uma garrafa. Na obra adaptada para a TV, o Saci passou a fazer parte da turma do Picapau Amarelo e se tornou um personagem simpático entre as crianças.
Boitatá
Em tupi-guarani, quer dizer cobra-de-fogo. E é isto que o ente mitológico aparenta ser: uma cobra gigante, com o corpo transparente e cheio de pontos de luz. A lenda da cobra de fogo muda um pouco de acordo com a região do país, mas a versão predominante é a de um ser que - embora pareça monstruoso - possui uma missão nobre: a de proteger as matas, neste caso, da ação daqueles que provocam as queimadas. Assim é que todo mito tem explicação: a aparência de um réptil de fogo tem a função de alertar e "fazer guerra" contra o incêndio criminoso na floresta.
Caipora
O Caipora, como mostra o nome, é aparentado do Curupira. O corpo pequeno e a cabeleira colorida são características comuns. O adereço simbológico, neste caso, é o porco selvagem no qual o Caipora anda montado; são figuras atreladas. A ideia é mostrar que ele está junto dos bichos da floresta, representando a proteção da fauna brasileira.
A proteção do Caipora é tanta que ele, veloz, com a ajuda do companheiro, corre atrás dos caçadores e exploradores que tiram da natureza mais do que o necessário para a sobrevivência. O ente é um bravo defensor dos animais.
Mula-sem-cabeça
Personagem central de uma das lendas mais antigas - e temidas - do Brasil, a Mula-sem-cabeça é um mito forte no interior das regiões Centro-Oeste e Norte do país. Representa a assombração de uma mulher que seduziu um padre e recebeu uma maldição: vagar pela noite (do entardecer de quinta ao amanhecer de sexta), transformada num equino acéfalo e descontrolado, disparando pelos campos, a "soltar fogo pelas ventas". É a popular "mulher-do-padre" presente no imaginário das brincadeiras infantis.
Há quem diga que o mito brasileiro tenha ligação com "entidades" da Espanha. E, simbologicamente, com o "Cavaleiro sem cabeça" norte-americano. Ambos lembrariam algo pecaminoso e condenado pela Igreja, numa forma mais recente das tais bruxarias medievais e coisas do gênero.
Lobisomem
A figura do lobisomem é universal. Quem nunca se assustou, diante da telona, com o monstro que morre com a "bala de prata"?
O mito veio do folclore europeu. Só que lá a criatura surgiria a partir de uma mordida de lobo em noite de lua cheia. O homem mordido atacaria outra pessoa, que também se transformaria, e assim por diante.
Mas aqui no Brasil a lenda do lobisomem adquiriu características próprias. Segundo a imaginação popular, o Lobisomem brasileiro seria o primeiro "filho-homem" de uma mulher com sete filhas; em outras regiões, o menino receberia a maldição se fosse exatamente o filho de nº 7. Ainda de acordo com a crendice, o rapazinho começa a se transformar na criatura ao completar 13 anos.
Aí a maldição "toma corpo" e, em terça ou sexta-feira de lua cheia, se afunda em matas ou lugares desertos, a fugir da civilização (para a qual se torna uma ameaça). Faz ataques a humanos e destruições pelo caminho, às vezes "abatendo vilas inteiras".
Detalhe: a tal transformação, tornando o rapaz meio-homem, meio-lobisomem, aconteceria numa encruzilhada e teria fim com o amanhecer: ao primeiro raio de sol, a criatura volta à forma humana.
Negrinho do Pastoreio
Mito vivenciado especialmente no sul do país. Segundo a lenda, o Negrinho do Pastoreio era um menino escravo que pastoreava os cavalos de uma fazenda. Certa vez, ao retornar da missão sem um cavalo baio, o seu "senhor" o castigou, chicoteando-o até que sangrasse. O garoto teria ido e encontrado o cavalo, porém não conseguindo trazer o animal de volta. E da segunda vez o fazendeiro o teria lançado num terrível formigueiro! Deixou-o lá por toda a noite, e - ao amanhecer -, lá retornando, encontrou o garoto completamente sem ferimentos.
A Virgem Maria havia protegido o garoto e também lhe devolvido o cavalo baio. Desde então, o menino seria visto a pastorear o cavalo pelas estâncias.
No contexto de variações da lenda, é narrado também o episódio do menino com uma vela nas mãos, iluminando os campos com as gotas desprendidas da vela, até achar o cavalo.
Boto cor-de-rosa
O mito é da região Norte do país. Segundo a lenda, em noites de lua cheia - em períodos próximos aos festejos juninos -, o boto cor-de-rosa (um rosado "golfinho de água doce") sai do Rio Amazonas, transformando-se num belo homem.
Galante dançarino, conquista a moça mais bonita que encontra. Então a leva até a beira do rio e a engravida. Depois disso, volta a ser boto cor-de-rosa no seu habitat. Por isso é que se diz por lá que "todo bebê sem pai é filho do boto"!
Nenhum comentário:
Postar um comentário