Aritmética macabra



     Há quem goste de contar mortos. Aliás, gostam muito. É a saída, nada honrosa, para aqueles que tentam defender o indefensável. A argumentação política vira uma simples somatória, e o dedo aponta para o outro. Ele, o outro, é pior, matou mais.

     Aritmética macabra que esconde preferências e justifica o terror.
Não é de hoje que vemos uma certa relativização da ditadura brasileira. Os nossos vizinhos são apontados como ditaduras de verdade, e aqui teria sido uma ditadura molenga, quase açucarada, uma ditabranda, como chamou a "Folha de S. Paulo".


     Se os militares argentinos mataram mais ou menos 25.000 pessoas, os chilenos teriam matado umas 4.000, ambos países com populações bem menor que a brasileira, o que seriam os cerca de 400 (número mais que controverso) cadáveres produzidos pela nossa ditadura? Não haveria motivos pra reclamar!

     Assim agem os contadores de cadáveres. Tomam os piores exemplos e comparam, tentando amenizar brutalidades, barbaridades. O horror!

     O projeto vencedor da ditadura foi ceifar a nascente sociedade civil brasileira. Quando parecia que deixaríamos de ser bestializados, com a sociedade se organizando, condição sine qua non de uma democracia, os militares, assustados assim como uma parte da elite, deram o golpe.

     Sofremos até hoje com este aborto, e levará ainda algum tempo para recuperamos a história ceifada.

     Mas o canalha insiste, conta, soma, adiciona, justifica a violência de Estado. Nada, absolutamente nada, pode justificar o Estado atentar contra seu povo, contra suas liberdades e sua existência.

     Toda a sociedade brasileira foi vítima, exceto os algozes, e pagamos até hoje. Mas esta macro-história, a generalização, é fria, insensível, sem rosto.

     Uma das vítimas do militares se matou no sábado, dia 16 . Tinha 39 anos. Foi torturado quando bebê, com 1 ano e oito meses de idade, como forma de pressionar o pai, também preso e torturado em prédio oficial do estado brasileiro.

     No Deops, o bebê foi arremessado ao chão, tomou choques. Chorou de dor e fome. Apanhou mais.

     Carlos Alexandre Azevedo se matou, possivelmente pelas sequelas da tortura que o Estado brasileiro, por meio de seus agentes, praticou. Tinha desenvolvido paranóia, fobia social. Quase tudo o assustava, lhe causava medo, paúra.

     Os agentes zelosos cumpriam ordens. E cumpriram maravilhosamente bem. Uma ação sistemática, organizada, planejada, calculada. Foi uma política de Estado, não um excesso de uma ou outra pessoa sádica. Os culpados são muitos, agentes, mandantes e coniventes, e estão aí, velhinhos, pegando filas preferenciais no supermercado, com cara de senhores respeitáveis.
Talvez hoje tenham chorado com a notícia do suicídio de Carlos Alexandre. Talvez tenham lavado as mãos, em estado de negação, se eximindo da responsabilidade sobre o quadro clínico de Carlos.

     Talvez tenham, numa aritmética macabra, hipócrita, apontado o dedo e dito, se justificando: Foi necessário. O comunismo seria bem pior. Ahhhh, e a Argentina, a Argentina matou muito mais que nós. Aqui foi ditabranda.

     E assim dormem, tranquilamente, depois da sopinha sem sal.

    A ditadura brasileira matou, e continua matando mesmo quase trinta anos após seu fim. E isso é o que basta.

Fonte Walter Hupsel | On The Rocks

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